Os Mesmos Olhos

Um meio-rosto
estatelado na superfície do espelho. Lábios vermelhos,
pele alva, uma lágrima. Não tinha mais coragem de olhar
para fora ou para dentro. Os olhos não me faziam mais
sentido. Um céu de nuvens.
Não chorava por mim mesma, lamentava a indiferença. Os
dias não tinham mais gosto, nem odor. Simplesmente eram.
Sim, lembrava-me da música nos ouvidos e do tempo em que
as cortinas haviam sido ar. A aurora batia à janela
carregada de porquês. As vozes d’alma eclodiam do peito,
uma a uma.
A memória arrancou-me um sorriso. Primeiro franzi
levemente a face esquerda e depois sorri. Não tinha
ilusões de que aquele esboço pudesse significar
felicidade. Mas causava-me um prazer sutil o sorriso.
Decidi então olhar. Primeiro assustei-me com o reflexo,
depois enxerguei. Vi meus ombros frágeis, o colo magro.
Mais idade do que eu sabia ter.
Num impulso, iniciei meticulosa pesquisa ao longo de mim
mesma. Os mesmos azuis nos olhos que antes eram brilho.
As mesmas mãos. Aquela silhueta tão minha.
Um rosto inteiro, de olhos nos olhos do espelho. Lábios
vermelhos, pele alva, uma lágrima.
Agora

Ela se funde com
o sofá vermelho, comido pelo tempo. As traças passeiam
por suas bordas e meios como se nunca houvessem
pertencido a outro lugar. As pontas de suas unhas
descascadas brincam com um dos buracos no pano, fazendo
e desfazendo movimentos circulares.
Olha fixamente para a parede. Ali, naquele obstáculo de
cor nenhuma, ela encontra paz para viajar pelas traças
de sua vida. E as paredes.
“Não, é só o que ouço. As portas estão fechadas. Onde
estão as possibilidades para esse movimento
interrompido? Como posso refazer, retransformar, fazer
recaber? Só assim, poderia olhar numa direção
desconhecida, tatear o que meus dedos não sabem que
existe. Experimentar o estranho. Meu corpo se contorce
nas ondas de uma resistência que me persegue, emite sons
de um passado que antes minha razão ignorava. Até agora.
Sei que esse é o instante do mergulho, da oportunidade.
Se tiver coragem, estes serão o fim e o começo”.
Fechou os olhos para uma prece-sua. Como já fazia tempo
não tinha religião alguma, sua maneira de rezar era
muito ou quase nada particular: buscava o escuro dentro
de si, percorria tranqüilamente partes do seu dentro, na
tentativa de falar com Deus.
Abriu os olhos e a parede estava ainda lá. Levantou aos
poucos, sentindo cada pedaço seu desgrudar do sofá, e
partiu. Pra nunca mais voltar.
Mulher, Mulher

Um grito que vem
do umbigo. Bem lá do meio do umbigo, daquele buraco
engruvinhado, de saliências e estória. Escuridão.
O ar vai entrando devagar, enfia-se em cada dobra de
dentro como se quisesse atingir as estrelas. Da
cavidade.
Pincelo uma folha de papel igualmente amassada e gasta.
Aguardo o não sei o quê do destino. Seria a hora mesmo
de mudar uma vontade e clicar os dedos pra fazer
diferente. Não quero que seja assim de repente, tudo de
uma vez. A felicidade nem poderia me pegar de
sopetão. Sempre aprendi comigo mesma que primeiro tem que
ser triste pra depois tentar. Ser.
Mas e o grito? Acho esse um jeito meio louco de querer
fazer a voz aparecer. Senti até o calor da minha
barriga, o bafo quente me soprou o queixo. Acalmei
quando entendi que ele só estava vindo de lá debaixo. Só
isso. Quando chegou, corri botar a cabeça debaixo do
travesseiro. Fiquei com vergonha. O que o marido podia
pensar? E as crianças? “A mãe ficou lelé de vez, vai
ver”.
Desescondi a cabeça e primeiro olhei em volta pra ver se
não tinha ninguém já zombando de mim. Silêncio. Levantei
num cambaleio e me debrucei sobre a mesa faz-tudo do
Jorge. Tinha uma porção de folhas brancas lá em cima.
Agarrei a mais amarelada pelo tempo e fiquei alguns
minutos sentindo o pulso dela na minha mão. Nunca tinha
tido coragem de falar alguma palavra para o papel.
Sempre bisbilhotei de rabo de olho as do Jorge, acho
muito bonito, mas nunca tive o impulso de inventar as
minhas.
Puxei a cadeira de balanço e descobri que o braço de
madeira comido pelas traças pode virar apoio, feito
carteira de criança. Foi a primeira vez que prestei
atenção no vai-e-vem da minha cadeira. Vai, o meu
coração acelerado e angustiado por uma causa que eu não
sei bem. Vem, uma vontade de chorar que não me cabe mais
e que não sei como fazer passar.
Segurei o papel num agarro que só água fervendo podia
soltar e escolhi a caneta vermelha, meu brinde da
drogaria pelo dia das Mulheres. Sem perceber, parei de
pensar e fui sendo levada pelo vai-e-vem da minha
cadeira e o vazio do papel. Quando me dei de novo conta,
tinha escrito somente uma palavra de ponta a ponta:
MULHER. Toda em vermelho.
Um choro doído e aliviante me fez largar caneta e papel.
Chorei o meu vazio e chorei aquela Mulher que pela
primeira vez apareceu pra mim.

Música: Woman, de John Lennon

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