Crônica: A Emboscada

Jantar normal, ninguem era conhecedor!
Era necessário prevenir para que não se pedisse aos
lavadeiros fardas lavadas, nada de limpeza extraordinária
de armas, a ida inopinada ao paiol buscar um cunhete de
munições já aberto como para conferencia de existencias: nada
de movimentações que denunciassem anormalidade...
a noite se foi cerrando, naquele por de sol, único, africano.
Os animais, em fila indiana,entravam no arame
farpado, por baixo da improvisada trave levadiça do
simbólico portão de viaturas.
Um quartel? Pouco menos que meio campo de futebol: duas
construções de adobe revestido a cimento do lado
direito, outro do lado esquerdo seguido do gerador "lister-frapil"; no
topo o coberto a capim da cozinha. Suficiente para 27
homens perdidos mas fronteiriças "matas" do Congo
e lentamente, debicando aqui e ali, vieram as
galinhas, seguidas das cabras, dos cães...fechando a
lista, meus saguins.
A opressão no estômago se acentuava, como que agonia: meu
ordenança, aflito me dava a escolher entre omelete, batata
frita, galinha ou outro... Minha alimentação já era só uma
refeição ao 3º dia, até aí mantido a café.
Me levantei da cadeira feita de barril de madeira, e fui
chamando os dez elementos que necessitava: entramos no
quarto/enfermaria, por ser o mais vasto: dei a conhecer o
que preparara para a noite.
Sairiamos às 2 horas da manhã, levando cada um um pão no
bolso da perna das calças de camuflado e um cantil de
água, 4 carregadores de munições com 20 cartuchos
cada; fardamento,calças e tee-shirt, botas de lona -
haveria de haver necessidade de velocidade...
nada nos bolsos que fizesse barulho, nada de cigarros, um relogio de pulso para cada dois e que não brilhasse, pelo
que se formaram de imediato as parelhas.
A revista seria no mesmo local às 1h30.
E à hora militarista, o pessoal saltitou, mostrou que nada
havia nos bolsos,nada ruidoso ou que suscitasse
atenção, um maço de tabaco e um "dupont da mata" para
todos a meu cargo. Os cartuchos entraram nas câmeras das
armas, ficando prontas ao disparo.
No silencio, sem perturbar os restantes que dormiam, sob
os olhos esgazeados e interrogativos do sentinela, nos
envolvemos no escuro silencioso da quase madrugada em
passo célere...
Fugimos dos trilhos e picadas, possivelmente armadilhados
e minados... caminhavamos à vista mas relativamente
afastados dessas vias.
Os vales se seguiram; na passagens de alturas, iamos pela
chamada crista militar, uns metros abaixo da geografica,
para evitarmos nossas silhuetas... os olhos tentavam
descobrir possiveis posições de tiro e se alguem as
ocupava... o chão tambem era foco devido a poder haver
arames de tropeçar das armadilhas... o tempo contava, 4h20
já luz de dia... era necessário embrenhar ainda mais na
floresta, para evitar a todo o custo sermos detectados...
Os olhos ardem do suor salgado que escorre da testa, a
face e as mãos ardem dos golpes das folhas da
vegetação, a marcha é mais lenta e cuidadosa, os flancos e rectaguarda me preocupam, os ouvidos alerta, mas a
velocidade de penetração é primordial; irritação pela
floresta não pode haver, para que ela e seus deuses não
se vinguem, nos enovelando ainda mais...
Cuidado com as armadilhas de caça: buraco fundo pleno de
pontas afiadas para esventrar... qualquer sinal nas
arvores nos avisava: um bocado de pano velho e cinzento
pelo tempo, um pau seco preso nos galhos, um cesto roto...
respeito silencioso pelo lugar de deus indígena (um
tronco, uma pedra, um pau?) da aldeia próxima (detectável
pelo cheiro do fumo velho): a sua presença se nota pelo
seu peso estranho, e nervosismo inexplicável.
Os pássaros não podem deixar de cantar, ao minimo
suster, paramos tambem para a vida selvagem se
recuperar... os macacos olham para nós lá de cima, tranquilos... eles, pássaros
e macacos nos protegem com sua estabilidade, nos dando
assim o sinal que somos só nós e eles...
os quilómetros passam, a fronteira fisicamente
inexistente teria sido já ultrapassada,paramos na altura
de o povo ir para as lavras... recomeçamos na hora de
calor, quando todos repousam...
As mãos crispadas na espingarda, o radio-emissor vai
rodando por todos, porque as alças cortam a carne.
Estamos agora sós num raio de 100 quilometros, ninguem
poderá nos ajudar...
o local de destino está proximo, paramos.
No chão é desenhado com o bico de um pau, o esquema do
terreno: tu, "A" e tu "B" grupo de detenção à frente!; "C" e
"D" o de rectaguarda!"E", de vigilancia na nossa
rectaguarda; os restantes, grupo de assalto do lado
leste (lado da luz do sol) pela ordem seguinte "F" e
"G", eu,"H" e "I"... fogo à vontade depois de meu tiro
inicial; o assalto à minha voz!necessidades
fisiológicas, neste local e neste momento, e cobertas por
terra: 10 minutos para prontos a seguirmos e tomarmos
posições!
A picada faziam o tradicional longo "S", e deitados, esperamos. Com
a percepção confiro as colocações de cada um.
As formigas percorriam nossos corpos, as moscas com sua
ferroada de ferro em brasa, mas o receio de um movimento
em altura imprópria, nos fazia ficarmos imóveis... com o
escurecer, os mosquitos fizeram seu voo, como que entrando
zumbindo por um ouvido, um silencio breve e o zumbido de
sair pelo outro ouvido...
um bando de galinhas do mato veio pousar e debicar na
poeira da picada, mesmo na zona de morte, o que nos fez
sorrir e até apontarmos para elas, sentindo-nos como que
vencedores do alarme da sobrevivencia animal...
o tempo passava, os ossos e musculos doiam da posição
ventral, a arma era insuportavel de calor... a fome
começava a dar sinais... horas... a noite chegou... do bolso
tiramos nosso pão, seco e quebradiço do calor, da humidade
seca do suor; a água foi deslizante na garganta, depois de
bochechada,havia de a poupar! 3 rolhas de cantil era a
dose depois da soalheira de perto de 45º...
alguns dormiram no sentido dos ponteiros do relógio para
o grupo de assalto, porque em cada grupo teria que um
ficar de sentinela.
A madrugada chegou com o fim do cacimbo (garoa) da
noite: havia que disfarçar a vegetação mexida ou
esmagada, a hora se aproximava e por fim chegou: o ruido
de areia esmagada e de liamba (maconha) atingiu aos
nossos sentidos, cada vez mais próximo... uma mulher se
avistou, pouco carregada, sem ar de ir trabalhar a
lavra, outra seguia a 1 passo dela: deixamos passar.
Apareceu o 1º grupo de guerrilheiros, uns 3 armados,outro
era carregador: nossa sensação de estarmos a ser vistos
oprimia para uma resolução imediata:o suor frio do medo
de que estariamos a ser vistos, se misturava com o
escaldante da temperatura ambiente.
O grupo se foi aproximando dos homens de detenção à
frente, segundo grupo apareceu constituido por mais 7
homens... calma... todos terão de ficar na zona de morte!os
olhos medem as distancias... não sabemos se haverá mais
que nos possam envolver e passarmos de emboscadores a
cercados e emboscados. Por sinais atribui os alvos para
cada do grupo de assalto, dois por cada; os de detenção à
frente e os da rectaguardam terão de eliminar o 1º e
ultimo da fila,no mínimo...
É o momento: da minha arma sai o tiro certeiro para
aquele que me pareceu mais desenvolto, abrindo o
torrencial de fogo! Ao grito de "assalto", arrancamos como
molas para a picada, sem notar os disparos já à nossa
volta, corremos até ao lado contrário, semeando projécteis
a qualquer movimento dos nossos destinados. Chegados no
outro flanco do trilho, acabamos com o que ficara atrás
de nós...
Recolher as armas do inimigo, ver o conteudo dos bolsos e
do interior das camisas... e rápidamente tomarmos a
direcção contrária quer para a fronteira quer para o
quartel: havia de impedir qualquer retaliação... eramos
agora a caça!aqui, o caçador e o caçado se alternam!
Já perto da picada de viaturas escondemos o espólio
metálico, para não nos atrazar... mais tarde viriamos
buscar
Em passo acelerado, correndo por vezes, fomos fazendo um
vasto circulo,sempre parando nos pontos dominantes
propícios a ver se eramos seguidos... mas a preocupação
aumentava quanto mais perto do destino:seria que
estariam nos esperando quando já convictos de estarmos
quase a salvo?
As mudanças de direcção eram constantes,ora o sol no
ombro direito (norte), ora no esquerdo (sul).
O alívio quando por fim passamos o arame farpado e os
abrigos de tiro: a alegria nervosa era contagiosa,cada um
contava sua façanha,enquanto limpava sua arma... os
prontos, debaixo do balde de lona que outro soltava a
água de duche, cigarro aceso nos dedos no braço estendido
e descansado na lona circundante, numa nudez ávida de se
livrar da crosta de toda a lama fisica e psiquica
agarrada.
Redobramos as sentinelas nessa noite...
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Portugal/Brasil

Música: Polonaise Militar, de
Chopin

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